terça-feira, 12 de abril de 2011

Light

O Cinema Nacional não passou por épocas de produção tão intensa e industrial quanto o estadunidense, portanto não teve como resultado um grande número de obras inspiradas ou baseadas em fatos reais. Um dos principais filmes “baseados em fatos reais que marcaram o público” do Brasil é “O Bandido da Luz Vermelha”, dirigido por Rogério Sganzerla em 1968. Além do personagem principal ter seus crimes e características inspirados pelo assaltante e assassino João Acácio Pereira da Costa, a abordagem do filme é uma sátira completamente relacionada à mídia e à opinião pública da época dos crimes.

Na época de produção do filme houve uma movimentação pouco planejada e não muito autoconsciente de alguns diretores do nosso país. Esta movimentação se direcionou a temas pouco vistos e anteriormente evitados; era um cinema fruto da Boca do Lixo, resultado de uma estética decadente e com uma visão política menos utópica que a do Cinema Novo, mais amarga em relação ao futuro. O chamaram de Marginal.

Nada mais marginal que ter como personagem principal um vilão e deixa-lo ser retratado pela boca dos outros. O filme se utiliza de uma narrativa guiada por locutores de rádio e imagens de manchetes sensacionalistas de jornais para nos descrever o seu Bandido da Luz vermelha. Enquanto um narrador homem e outra mulher se revezam o chamando de vil, tarado sexual, misterioso, ousado e até utilizam o ridículo adjetivo bobo, o próprio personagem narra em primeira pessoa seus crimes e fala sobre seu passado: se descreve como um descrente e um sem futuro, se justifica para os outros sem sentir dó de si mesmo ou remorso dos crimes cometidos, vive em uma confusa contradição.

Enquanto sua imagem é pintada pela imprensa ele mesmo se convence dessa imagem, é como se a mídia o afetasse como a qualquer outra pessoa comum, e isso só o motiva a continuar cometendo mais crimes. Sganzerla mostra que João Acácio guardava tiras recortadas de notícias sobre seus crimes e, dentro de sua busca de compreensão existencial, ele da uma autorização e um poder para a grande imprensa criar uma imagem dele para que se transforme em uma ilusão para ele mesmo. O resultado é que passa a se ver como um personagem, cada linha a mais que o transforma em mito o desumaniza mais um pouco.

À certa altura do filme vemos a crítica cada vez mais feroz: a questão ética dentro da história do filme é tratada com mais dureza do que a questão de como a ética da narrativa do filme é construída, ou seja, as ações condenáveis dos personagens passam a ser mais importantes do que a forma imoral que o filme os relata. Nada mais justo dentro de uma ironia do que não se levar a sério, ao passar do tempo os locutores de rádio falam tanto dos assaltos, assassinatos e supostos estupros que João Acácio, antes conhecido como Bandido da Luz Vermelha, passa a ser tratado apenas como Luz. Seu nêmesis natural, o também romantizado investigador policial do submundo se torna extremamente conhecido pelo grande público sob a alcunha de Cabeção.

Por mais terríveis que fossem os crimes de Luz a roupagem dada a eles pelos narradores faz com que o monstro se torne sedutor, íntimo de quem acompanha a história. Se fizessem um cartaz de procurado para ele como nos filmes de faroeste, com certeza algumas pessoas tentariam capturar o personagem vivo pensando: “Ele não é tal mau assim”. De certa forma o filme o protege, já que as acusações em cima do João Acácio do mundo real nunca conseguiram provar estupros ou abusos sexuais; já os assaltos, sequestros e assassinatos foram amplamente divulgados e provados de diversas maneiras. O personagem, como um anti-herói com uma pegada sexual e livre, muda de função, emprego e objetivos com a maior facilidade. A falta de perspectiva o torna um homem bruto, a selvageria o convence de que ele pode levar uma vida invejável, que qualquer ser humano sem sua coragem desejaria.

Os valores distorcidos do heroísmo dão uma ilustre capa de mistério ao bandido. Como já mencionei antes, esta camada narrativa é criada com a intenção de chocar. Cada vez que um narrador louva um crime ou trata a brutalidade de forma natural o filme sacrifica sua própria ética em nome da ironia e critica os meios de comunicação de massa. Como Filme, a obra “O Bandido da Luz Vermelha” possui poder de comunicação para as massas, porém sua estética de expressão pode levá-lo ao status de também ser uma obra de arte, o que o imuniza de qualquer julgamento moral na forma de como diz as coisas, já que a arte não existe para agradar e sim para despertar e revitalizar anseios humanos.

O tema e a mensagem final podem e devem ser analisados sob um olhar ético, e no final passam uma idéia importante e até mais dócil do que a realidade, porém a linguagem utilizada pra isso tem sua origem marginalizada e deve ser tratada com cuidado. Às vezes o filme diz uma coisa com a imagem, outra com som, outra com a ação, e a combinação de todos os fatores resulta em uma mensagem completamente diferente. É o caso do “Bandido da Luz Vermelha”, que de marginal mesmo só tem o “Luz” e o nome, já que foi criado com toda a atenção e cuidado para passar uma mensagem ética sobre a desgraça: ela aumenta à medida que só observamos e nada fazemos para ajudar o desgraçado.


André Natali, Janeiro de 2011

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